sábado, 18 de setembro de 2010

Caderno de Turismo

"Zé, essa é boa.
O que danado a gente vai fazer em Lisboa? Bariloche e Shangri-lá? Traslados para lá. Para cá. Travessia de barco pelos Lagos Andinos. Nunca tinha ouvido falar em Viña Del Mar, Valparaíso. A gente não devia sair do lugar.
Quem já viu se aventurar na Ilha do Cipó? Ilha do Marajó? Itacaré? Fugir de dentada de jacaré? O que você quer, homem? Sem dinheiro, chegar onde? Não tem sentido. Oklahoma, nos Estados Unidos. É delírio. Peregrinar até as múmias do Egito.
Que história é essa de cruzeiro marítimo? Caribe, Terra dos Vikings, Mediterrâneo? Enfrentar o Oceano Atlântico? Canadá, Canaã? Deserto de Atacama? Que besteira! Ir para Bali, Beijing, Xian, Xangai, Hong Kong.
Zé, olhe bem defronte: que horizonte você vê, que horizonte? Pensa que é fácil colocar nossos pés em Orlando? Los Angeles? Valle Nevado? Que língua você vai falar no Cairo? Em Leningrado? Nem sei se existe mais Leningrado.
Zé, esquece.
Nada de Andaluzia. Tahiti. A gente fica é aqui. Que Sevilha? Roteiro Europa Maravilha. Safári na África pra quê? Passar mais fome? Leste Europeu, Escandinávia, PQP.
Presta atenção: a gente nem conhece o Brasil direito. Bonito, Chapada Diamantina. Dos Veadeiros. A América Latina. Guiana e Guiana Francesa. Não existe beleza. Rota do Sol. Rota das Estrelas. Perca. Atrase a viagem, Zé. Não parta.
Você não vai para a ilha de Malta, não vai. Eu não deixo. A vida da gente é aqui mesmo. Sempre foi aqui mesmo. Não nascemos no Berço da Civilização, Istambul e Capadócia.
Zé, o que deu na tua cabeça? Ora, joça! Estamos Longe de Miami, homem. Acapulco e Suriname. Nosso destino é um só. A gente não tem dólar. A gente não tem cartão. Deixa de imaginação. Você não tem medo de avião? Tanta asa que cai pelo chão. Atentado, bomba em Bengasi, doença em Botsuana.
Zé, estou sendo franca: olha bem pra nossa cara.
Por que partir para Dinamarca? Caracas? Cancún, Congo? Cachorro a gente enterra em qualquer canto. Enterra aí no quintal, Zé. E pronto."





Marcelino Freire.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Dia 1.

Cheguei em casa hoje com a leve impressão que tinha uma saga pela frente. Tentei conversar com a mãe, mas acho que não foi uma escolha muito sábia da minha parte. Conversa com mãe sempre acaba em um jogo de egos. Fiquei com vontade de chorar mas me segurei.
Mais tarde, Paizão chegou com Bibia e eu e Carolzinha brincamos com ela. A gente usou tinta, o que eu descobri ser uma ferramenta que prende a atenção de crianças. De vez em quando (e eu não sei porque) me vinha uma vontade de chorar, mas eu segurava e engolia o choro a seco. Acho que era porque eu estava na frente de uma criança, e aqueles gestos e voz e beleza me tocaram mais profundamente.
Antes de dormir, com a casa em silêncio, os fantasmas voltaram a me atormentar. Sozinha no meu canto eu pensava em muitas coisas, e a dúvida fazia meu coração disparar. Acho que eu me faço mal. Meu vazio me faz mal, e minha mente não consegue pensar em flores quando a guerra se anuncia.
Eu sou mais alma do que achei que era.

"Se eu tivesse mais alma para dar, eu daria..."

terça-feira, 27 de julho de 2010

Dia 3.

Dizem que somente os enamorados observam a lua e são capazes de retirar dela toda a beleza de uma natureza. Mas não foi amor o que senti quando a fitei por horas hoje à noite, foi liberdade.
Queria pular da janela, dar um rasante no chão e voar até lá para pegá-la. Essa liberdade foi a de sentir nada mais nada menos que sou eu mesma. Que luto pelos ideais que acredito, ainda que eles não permaneçam para sempre.
Hoje eu dancei. Não, eu dancei! Mesmo! Eu libertei um pouco deste medo, deste monstro, fiz uma terapia. Eu andei no plano baixo, médio e alto. Eu rolei no chão, eu sujei o cabelo, eu pensei em assombros mas depois lembrei da beleza que é ter convicção de quem você é.
Eu sei, eu sinto. Nada tira de mim a delícia de ser o que sou, de saber o que sou, de ter o que sou.
Eu arrisco, eu petisco.
Que venham os monstros!

sábado, 2 de janeiro de 2010

E que assim seja...

"Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal.
Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas...
E, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."

Lou Andreas-Salomé.

domingo, 29 de novembro de 2009

Perto Demais.



"-Where is this love? I can't see it, I can't touch it. I can't feel it. I can hear it. I can hear some words, but I can't do anything with your easy words."

"-It's a lie. It's a bunch of sad strangers photographed beautifully, and... all the glittering assholes who appreciate art say it's beautiful 'cause that's what they want see. But the people in the photos are sad, and alone... But the pictures make the world seem beautiful, so... the exhibition is reassuring which makes it a lie, and everyone loves a big fat lie.”

"-No one will love you as much as I do. Why isn't love enough?"

"-I don't want to lie. I can't tell the truth. So it's over."

"- I don't love you anymore. Goodbye."

"-Yes, I would have loved you... forever. Now, please go."

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Sem saída.

"Deus é amor sem segredo
Nos olhos do cachorro
E a todo animal que ele quis Que visse
Sua obra já pronta.
Morro de medo dos teus olhos Sem palavras
Bigorrilhos, duques e xerifes
Porque me viciei em sons Codificados
Porque eu sei que amar é Abanar o rabo
Lamber, latir e dar a pata."

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A arte de ser feliz


Houve um tempo em que minha janela
se abria sobre uma cidade que parecia
ser feita de giz.
Perto da janela havia um
pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra
esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre
com um balde e, em silêncio, ia atirando
com a mão umas gotas de água sobre
as plantas.
Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o
jardim não morresse.
E eu olhava para
as plantas, para o homem, para as gotas
de água que caíam de seus dedos
magros e meu coração ficava
completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o
jasmineiro em flor. Outras vezes
encontro nuvens espessas. Avisto
crianças que vão para a escola. Pardais
que pulam pelo muro. Gatos que abrem
e fecham os olhos, sonhando com
pardais. Borboletas brancas, duas a
duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lopes de Vega.
Às vezes um galo canta. Às vezes um
avião passa. Tudo está certo, no seu
lugar, cumprindo o seu destino. E eu me
sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de
cada janela, uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem
diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a
olhar, para poder vê-las assim.
(Cecília Meireles)